segunda-feira, 10 de novembro de 2008


No verão de 1967 papai foi novamente transferido, agora para o 3o Esquadrão de Cavalaria Avançado, localizado na pequena cidade de Amambaí, mais para o sul do estado e região pouco habitada. Era a maior cidade daquela região longínqua e de difícil acesso onde se chegava por estradas que, em dia de chuva, ficavam intransitáveis.

Filho mais velho entre três irmãos eu tinha então dez anos e levava uma vida tranqüila ao lado do meu irmão um ano a menos na idade e de uma irmã que estava com sete anos quando nos mudamos para aquela nova e desconhecida cidade.

Era um final de tarde de dezembro de sessenta e sete quando o expresso Queiroz, única empresa de ônibus no estado que estava autorizada e encorajada a transportar passageiros entre Ponta Porá, Dourados e Amambaí, entrou pela longa e poeirenta avenida que cortava o pequeno lugarejo.

Logo na entrada da cidade havia um posto militar em que um cabo e um soldado do exército vigiavam a entrada e saída de todos os veículos e pessoas que poderiam estar transportando mercadorias proibidas, contrabando, indo ou vindo para o Paraguai.

Também, em razão da revolução militar de sessenta e quatro, o posto militar vigiava a entrada ou saída dos elementos considerados inimigos do sistema de governo imposto na época pelos militares e, na lista dos antipatizantes do novo sistema, poderia constar o nome de qualquer um que, ao contrário, não gostasse das formas e métodos então praticados pelos militares na condução política do país.

Haviam dois inimigos mortais para o sistema: Os comunistas, ou qualquer simpatizante, e o intenso contrabando de mercadorias que iam e vinham do Paraguai. Daqui pra lá transportavam o café brasileiro e na volta traziam bons wiskis e cigarro brasileiro que para lá era exportado e trazidos de volta sem nenhum imposto, o que representava altos lucros para quem os repatriava.

O velho ônibus pintado em prata e vermelho atravessou o posto militar instalado na entrada e à margem da estrada poeirenta que chegava à cidade vindo de Ponta Porã e iniciou uma longa descida pela rua principal, batendo a lataria que aos poucos ia se soltando pelos longos anos de uso nas estrada marcada pelos pequenos sulcos transversais formados pela água das fortes chuvas de verão que banhavam o local quase que diariamente atravessou a ponte de madeira num pequeno riacho e em poucos minutos estava diante da única praça da cidade. Lentamente circundou a praça e soltando chiados do ar comprimido que acionavam os freios, parecendo animal cansado que bufando se deitava no pasto, cheirando diesel queimado e fumegando pelos escapes finalmente parou, deu um último chiado e abriu a única porta dianteira para soltar a carga que para ali trazia. O lugar que todos chamavam de rodoviária da cidade era uma.....

No início dos anos 70 a única praça da pequena cidade de Amambai era o local mais bonito e bem cuidado do lugar. Motivo de orgulho de todos os moradores, a praça central era o único espaço com calçada acimentada, único lugar público que se pisava sem sujar os pés com areia ou lama nos dias de chuva; bem arborizada, linhas bem traçadas, grama e árvores cuidadas de forma impecável, a praça era o lugar mais bonito do pequeno povoado.

Situada na Rua Pedro Manvailler, única via de entrada e saída, a praça era ponto de referência para todos os pontos da cidade, que era formada por ruas em linhas retas e perpendicularmente impecáveis.

Na rua principal, em esquinas opostas à praça estava o Banco do Brasil, agência nova e recém inaugurada em agosto de sessenta e nove. Do outro lado da rua e de frente para a praça, o primeiro dos dois únicos postos de gasolina da cidade, o posto do Benjamim, de bandeira da Ipiranga, era ponto de encontro dos motoristas de táxi e caminhões da cidade. No meio da praça e de frente para a Rua Pedro Manvailler era colocado o palco das autoridades para os desfiles de sete de setembro e, de frente para o palco, o bar do Bauer era um dos mais antigos da cidade. Na esquina oposta aquela do banco, ainda na rua principal, a alfaitaria do Silvio Berri que mais tarde, por graça dos militares seria premiado com a chefia do executivo municipal.

Na rua paralela à principal e dou outro lado da praça estava a prefeitura da cidade e a casa do Dr. Valmir, primeiro prefeito da cidade e professor de matemática no Ginásio Estadual local.


A cidade sobrevivia da agricultura e no início da década de 70 chegaram os primeiros gaúchos, catarinenses e paranaenses para plantar a soja, pequena leguminosa que era mais conhecida como “feijão japonês”. Os campos agricultáveis da região eram até então formados por extensos cerrados, terras planas que eram utilizadas somente para agricultura de consumo. Extensas áreas que desapareciam no horizonte que continham plantações gigantescas de guavira, pequeno fruto campestre que no verão fazia a alegria da população das cidades da região. Catar guavira nos campos, nas tardes de domingo, era um dos programas dos nativos locais que, arriscando encontros desagradáveis com cascavéis, urutus e corais, iam em família, portando baldes, sacolas ou qualquer vasilhame em que pudesse ser trazido os pequenos frutos que eram, após a colheita, depositados em tanques com água fresca, o que tornava-os bem mais saboreáveis após colhidos quentes pelo forte calor que assolava a região.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Figura Carimbada


Em um dia qualquer, andando na calçada da minha rua, esquentada por um sol de quarenta e quatro graus, na minha velha bicicletinha eu pedalava nas ruas da vila militar de Amambai. Na rua do outro lado da minha, percebi que uma mudança estava sendo descarregada e aquilo anunciava a chegada de uma nova família na vila militar. Novos amigos, quantos filhos teria o novo morador, seria menino, menina ou os dois.
Diminuí as pedaladas fazendo dos pés os freios que arrastava o kids no chão quente e com os olhos esticados em direção à casa vejo uma menina, pouco mais de dez anos, loirinha, linda. olhei e fiz uma gracinha qualquer e a danada me respondeu mostrando a língua e rapidinho, feito garça espantada, entrou casa adentro. Fiquei apaixonado.
Fiquei ali parado, sem jeito, sem saber o que fazer. Aí então apareceu a figura; esta que está aí em cima, era o irmão da Talci, aquela danada que me mostrou a lingua.
José Jardim de Matos. Esse é o cara. Zézinho simplesmente. Rapidamente ficamos amigos e juntos, com o resto da gurizada, as aprontadas foram acontecendo no dia a dia daquele lugar onde o tempo desobedecia a qualquer tipo de relatividade.
A primeira das nossas grandes idéias foi aquela com uma ninhada de gatos que encontramos em um lugar qualquer. E agora, o que fazer com a duzia de lindos gatinhos?
O Zé teve a grande e genial idéia: Com uma tábua de mais ou menos um metro de comprimento, fizemos uma espécie de alavanca; com o pé direito o zé firmava uma das extremidades da tábua e a outra ponta era segurada com uma das mãos, e os gatinhos eram colocados no chão, debaixo da extremidadeda tábua que estava sendo segurada com uma das mãos; a tábua então era levantada a uma altura de meio metro e com um dos pés a tábua era empurrada para baixo e os pobre gatinhos eram - literalmente - esmagados. Pura crueldade de piá que não tinha o que fazer.
Outra grande idéia, agora minha: Bem próximo de nossas casas, na divisa da vila com o pátio do quartel, estava a enfermaria - pequeno hospital - do exército. Todos os restos de remédios eram depositados em um lixão sanitário a céu aberto, sem nenhum cuidado e ali eram deteriorados pelo tempo e pelo sol.
Juntamos todos os restos de vidros de remédios e ampolas de injeção que encontramos e disto surgiu a fórmula maligna, líquido escuro e gosmento que teria um destino.
Algumas galinhas, sem dono, andavam soltas pelas ruas da vila e pegar uma delas para aplicar-lhe uma boa dose da nossa fórmula estranha não foi dificil. Um pegava a ave penosa e outro injetava o líquido gosmento.
A galinha era solta, saia cacarejando, dava alguns passos e poucos metros adiante, caia morta.
Logo tratavamos de esconder nossa vítima porque, caso descobertos, a coisa iria ficar feia para nosso lado.
Posso garatir que não havia rotina em nossos dias.
Nem as idas para a escola, todos os dias, alguns de manhãs e outros a tarde tinham a chatice da mesmice.

As Praias do Panduí






Andar pelo leito do rio, sem rumo, descalço, sem direção e deixando-se navegar pelas águas límpidas e fresca que seguiam numa direção que não sabíamos e pouco importava para onde ia; enroscando-se nos galhos das árvores que o margeavam, sem medo do próximo passo, sem medo da vida, sem se importar com a primeira curva ou com a profundidade da água, no calor de mais de quarenta graus e parando, de vez em quando para sentar na pedra esquentada pelo sol de dezembro; espantando os lambaris e roubando laranjas, melancias e vergamotas dos sítios que margeavam o panduí.

Essa era a minha vida em Amambai no final dos anos 60.
Hoje, quando lembro da minha infância vivida em uma pequena cidade, perdida nos campos serrados do Estado de Mato Grosso, depois divido e chamado do sul; fecho os olhos e recordo a forma como vivíamos eu, meu irmão e meus amigos, de uma maneira e em uma terra que poucos meninos tiveram a sorte de viver o que vivemos. Não havia televisão, computadores, jogos eletrônicos, internet e mesmo assim éramos felizes, vivendo a simplicidade de uma vida em que somente a natureza era a cúmplice de nossas travessuras e marotagens que faziam a nossa alegria de viver.
Eu, o bugre meu irmão, o zé jardim e outros vivemos esta e muitas outras estórias.