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Quase que todas as tardes os nossos passeios pelo longo do rio Panduí era uma diversão sem igual. Andando na direção das águas, sem se importar com o tempo e com os perigos em mais uma de nossas expedições, seguiamos rio abaixo pouco mais de dois quilômetros da barragem onde funcionava a velha usina hidrelétrica já desativada.
Era tarde de verão. O céu escureceu rapidamente, parecia anunciação do fim do mundo.
O calor de mais de quarenta graus parecia confirmar que daquele dia o mundo não passava.
A cor escura do céu misturava-se com o escuro da mata verde formando uma enorme penumbra que nos dava medo.
O cheiro forte da terra que se levantava, empurrada pelos fortes ventos ardia nas nossas narinas, apesar disso nossos olhos insistiam teimosamente em permanecer abertos para assistir aquilo que nos parecia o espetáculo do apocalipse.
O quero-quero gritava no desespero do ninho arrancado do solo, os pés de guaviras balançavam roçando a moita de capim barba de bode, uns aos outros, se tocando até o horizonte do fim dos campos que se estendiam por muitos acres.
No céu os estrondos dos trovões mostravam a ira de thor que com o seu martelo, furiosamente batendo na forja, explodia em raios que riscavam o céu soltando línguas de fogo que iluminavam o negro do dia que virou noite.
Assustados ficamos calados, petrificados, somente nossos olhos viravam de um lado para outro.
Os mais novos iniciaram choro, os mais velhos mudos e não menos amedontrados começavam também a perceber que algo muito estranho estava acontecendo.
Em poucos minutos desabou o mundo em nossas cabeças, a chuva era torrencial.
Em uma das muitas curvas do panduí, aquela era a nossa preferida, onde o rio formava uma grande piscina natural, de água pouco profunda e límpida, algumas pedras que junto com os galhos das árvores nos serviam de trampolim, faziam daquele ponto, logo abaixo da represa, o nosso lugar favorito para os banhos nos quentes dias de verão. Logo após o almoço saíamos em bando de oito, dez ou mais guris, correndo pelos campos em poucos minutos se chegava ao ponto preferido.
As tormentas no meio tarde eram comuns naquela época do ano e não foram raras as vezes, mesmo abaixo de chuva ninguém saia da água morna pelo calor do verão, agora com a chuva a água esfriava tornando o banho muito mais gostoso.
No negro da escuridão, por entre as árvores, o barulho do vento começou a dar lugar a algo parecido com um sopro leve, misturou se ao ar um cheiro adocicado, doce de coco, não! talvez de leite, misturado com rapadura e mel de cana, era gostoso aquele aroma que agora tomava o lugar do cheiro da terra.
De repente, diante de nossos olhos, as águas do panduí começaram a borbulhar, uma fina névoa levantou-se sobre as poucas pedras, os peixes num fantástico espetáculo saltitavam aos milhares, lambaris, pequenos bagres e cascudos levantavam e levitavam no ar, queriam subir em busca do cheiro doce que tomou conta do lugar. As flores do mato abriam e fechavam suas pétalas, as árvores como que enlouqecidas por algo mágico e sobrenatural balançavam seus galhos para o alto, pareciam, igual aos peixes, reverenciar algo que vinha do céu.
Os pardais e tico-ticos se aproximaram em bando, quase tocavam as águas que parecia ferver em bolhas.
O quero-quero que antes gritava no desespero aquietou-se e a enorme sucuri preguiçosamente enrolou-se sobre a grande pedra pondo-se a observar o que estava por vir.
Parados dentro da água começamos a ouvir uma música que no início parecia vir de londe, devagar foi aumentando aquele som de centenas de harpas que tocavam um concerto de um hino de glória. Parecia a voz de um anjo vindo do céu.
Não se sabia de onde vinha, junto com o cheiro doce, para qualquer ponto que se olhava se ouvia e se cheirava aquilo tudo.
Em perfeita harmonia com as harpas os violinos acompanhavam a melodia que descia do céu, ouvia-se por tudo, era acalentador e ao mesmo tempo assustador. o que seria aquilo, começamos a nos perguntar, e a vontade de chorar já não mais existia, o medo passou.
Os peixes voltaram às águas, os pássaros se calaram, as árvores acalmaram seus galhos e um raio de luz iniciou sua entrada por entre a copa das árvores, levemente ao som das harpas e violinos a luz foi se fortalecendo, se alongando em direção ao rio, ás águas que já não borbulhavam tornaram-se prateadas, brilhavam resplandecendo a luz que vinha do céu.
O feixe de luz branca tocou a água, seu brilho quase ofuscava nossos olhos, a música, o gostoso cheiro de doce, atordoados nos juntamos bem próximos, quase abraçados,todos os pelos de nossos pequenos corpos se arrepiavam, os olhos não piscavam quando uma imagem começou a se formar, era mulher, em forma de anjo, não se podia ver claramente na imagem embaçada que se formou, uma mulher com roupas brancas e longas desceu suavemente por dentro do feixe de luz tocando levemente a fina superfície da água.
Seus pés não apareciam, estavam totalmente cobertos pelo longo manto branco que a cobria, seus braços caídos ao longo do corpo mostravam suas mãos abertas, com as palmas voltadas para nós. Seus cabelos eram negros e longos, seu rosto era bonito, coberto por um pequeno manto que caía sobre seus ombros e irradiava uma áurea em forma de coroa.
Com um sorriso encantador, fazendo um leve movimento com a cabeça e com as mãos indicava para que saíssemos da água, que fôssemos todos para a margem do rio.
Lentamente iniciamos a saída, devagar fomos todos subindo o pequeno barranco de pouco mais de três metros, já no alto, fora da água, olhando para trás percebemos que a luz foi lentamente se apagando e quando já estavámos todos sentados no barranco, de repente, pudemos ver o turbilhão de água que desceu o rio, arrasando os matos das beiradas, levando tudo em violenta enxurrada, arrazadora desceu destruindo tudo o que havia pela frente.
Foram poucos minutos em que assistimos algo nunca visto.
Um pedaço da velha barragem, que estava logo acima do nosso local de banho, não suportou o peso das água que continha, havia se rompido soltando milhões de litros de água que lá estavam represados.
A chuva parou, a luz voltou e o sol tornou a esquentar a tarde de verão.
Nossos banhos passaram a ser em outro local, próximo à nascente do panduí, acima da represa e da ponte.
Prometemos nada dizer a ninguém sobre o que aconteceu até que a linda senhora voltasse a aparecer para um de nós.